Como a internet me fez bicha e um agradecimento à Katylene

Iran Giusti
6 min readJan 26, 2021

Tenho trinta e poucos anos e como algumas (ou muitas pessoas) de trinta e poucos anos, vivi a transição da vida analógica para o digital. Vindo de uma família de classe média baixa, tive acesso ao computador e à internet já mais velho, do meio pro fim da adolescência.

Mesmo não sendo totalmente conectado, meus estudos e profissões logo desembocaram no digital. Dos idos do ICQ, passando pelo Fotolog e MSN, logo me vi escrevendo em blogs e de repente trabalhando em uma agência de publicidade com o Orkut, fazendo seeding e monitoramento.

De lá pra cá, tudo que foi sendo criado, ía eu fazendo perfil. De texto, fui de Blogspot, Wordpress até chegar aqui no Medium. Twitter, tava lá no comecinho também, assim como o quase finado Tumblr, que apesar de nunca ter sido uma rede que usasse muito foi o espaço onde tive mais visibilidade com o "Criança Viada".

Vira e mexe me deparo com coisas que criei e nem me lembro. Uma vez a cada quatro e cinco anos esbarro em algum texto antigo postado em um blog ou Facebook. Acho tudo horroroso, pensamentos que chego a me envergonhar, mas nunca apaguei nada, pra mim é muito importante ler aquelas coisas, lembrar do porque eu pensava daquela forma e ficar satisfeito em como cheguei nas convicções de hoje, percebendo que também tem muita coisa pra evoluir.

Meu trabalho hoje é a Casa 1, um centro de acolhida e cultura LGBT+ em São Paulo que existe há quatro anos graças a esse histórico todo com as redes sociais e a comunicação. Porém, não foi só na criação e manutenção da Casa 1 que a internet me ajudou, ela também fez com que fosse possível eu me entender e aceitar enquanto um homem gay e também como bicha.

Além da minha família ser de uma classe média baixa que ascendeu socioeconomicamente, ela é também uma família muito católica e tradicional, e foi extremamente difícil me entender e posteriormente me assumir. Hoje, passada mais de uma década não tenho mais nenhum problema e muito menos mágoas e há tempos não pensava sobre esse período da vida. Até a morte do Daniel Carvalho, criador de um blog chamado "Katylene" e de uma festa chamada "Balada Mixta".

O Dani morreu aos 32 anos de falência renal, minha timeline no Twitter e feed do Instagram se encheram de lembranças e homenagens. Rapidamente encontrei uma foto nossa, tirada em uma das tantas Mixtas , mas algo me impediu de postar, assim como de escrever qualquer coisa sobre naquele momento.

Depois de tantos anos trabalhando com redes sociais fui me desgastando, ainda tenho todos os perfis, acompanho o que está acontecendo e uso expressivamente as redes para o trabalho, mas me interesso muito pouco por descobrir novas coisas, seguir novas pessoas e arrisco dizer que 80% de quem acompanho nas redes é a mesma galera que tava comigo lá no matagal que era a internet nos 2000 e pouco e consequentemente, muitas dessas pessoas eram realmente próximas do Daniel.

No entanto algumas semanas se passaram e eu vire e mexe me pego pensando nele, e com os dias fui entendendo que a morte do Dani foi a morte de alguém muito importante na minha vida. Foi a morte de alguém que criou coisas que permitiram que eu me tornasse quem eu sou e lembrei que senti algo semelhante quando o Vitor Angelo faleceu em 2015, aos 47 anos.

Lá no começo da minha vida digital, o lugar onde encontrei informação e entendi muito do que sentia foi o Mix Brasil, que posteriormente se desdobrou em revistas e em um festival de cinema, esse último inclusive ainda existe e espero que dure muitos anos.

O lance é que o conteúdo do site do Mix Brasil, era o que a gente chama hoje, muito heteronormativo. Eu, uma gayzinha gorda de 15 anos na periferia de São Paulo não me relacionava em nada com o universo gay ali apresentado mas as opções eram pra lá de escassas e mesmo não me identificando, conheci o trabalho de muita gente legal por lá.

Veio então a faculdade e os primeiros empregos, que coincidiram com a explosão das redes sociais e a criação de blogs e personagens maravilhosos, com linguagens próprias e muito, mais muito pajubá.

Daí para os rituais foi um passo: todos os dias entrava duas a três vezes por dia nos blogs para consumir aquele conteúdo que eu realmente me identificava. Não se tratava de dicas de lifestyle ou então uma exibição de corpos e mundos tidos como perfeitos: nessa época o legal era passar vergonha.

A gente não entendia o que significava expor tudo nas redes, a gente não entendia como o que liamos e escrevíamos afetava (positiva e também negativamente) as pessoas, a gente tava só ali, rindo e rindo muito.

Só que sem saber, a gente estava também, ensinando e aprendendo muito. E com o Dani e sua Katylene, uma travesti moradora do Mboi Mirim, eu entendi que tinha um tipo de humor que me contemplava, aprendi uma linguagem, saquei que eu não era só um homem gay porque me sentia atraído física e afetivamente por outros homens, que era, e é mais do que isso.

Com o Dani eu aprendi que ser gay é ter uma cultura, um humor, uma linguagem. Entendi que se prender a qualquer coisa era uma besteira, o Dani foi uma das primeiras pessoas que escreveu celebrando figuras que até então era proibido gostar, de cantoras de forró até sub celebridades.

Vale dizer aqui que não acho que a internet era pior ou melhor na época, acredito que as coisas mudam e como muita coisa, tem seu lado bom e ruim

E o ambiente digital era pequeno pra tudo aquilo que o Daniel acreditava, e junto com o Pedro Beck e o Poms criou a "Balada Mixta" e aí foi a revolução: com um lema de NÃO CARÃO (tão na moda desde os anos 90), a Mixta era efetivamente uma das festas mais democráticas da cidade. Além de tocar de um tudo, inclusive musicas pop dos anos 90, axés e louvores do Padre Marcelo Rossi, o público era igualmente eclético, indo de roqueiros perdidos até uma molecada bem jovem, passando pelo povo da colocação, patricinhas e mauricinhos, drags, fashionistas e uma galera mais velha. Além claro da variedade de estilos e corpos.

Eu e o Dani em uma edição da Balada Mixta na Funhouse

A Mixta cresceu muito, migrou do sobradinho da "FunHouse" pra pistona com direito à palco do "Estúdio M", teve atrações, performances, muito babado e confusão e encerrou as atividades em dezembro de 2011, quase dois anos e meio depois da primeira edição, quando o trio fundador tinha entendido que a festa já tinha atingido seu potencial.

Muitas das festas que rolaram nos anos seguintes foram de certa forma, um desdobramento da Mixta e assim foi até uns dois anos antes da pandemia quando a cena da música eletrônica voltou com toda a força, ainda que uma ou outra festa de pop seguisse.

Faziam alguns anos que eu não encontrava o Dani, parte porque ele se mudou pro Rio de Janeiro por alguns períodos, parte porque também me afastei um pouco da cena noturna, mas segui tendo notícias pelas redes sociais e também pelos amigos em comum. Tínhamos todos a esperança de ver o Dani dar seus próximos passos e aguardávamos o que aquela cabeça tão inquieta ia fazer a seguir. Corria a boca pequena que ele estava ensaiando um retorno da Katylene, que eu particularmente acho que não teria mais espaço hoje em dia, talvez ele percebesse isso, ou então eu poderia estar errado, infelizmente, a gente nunca vai saber.

O que eu sempre vou saber é o quão grato eu sou a ele, assim como sou ao Vitor Angelo e à outras tantas outras pessoas importantes da comunidade LGBT+. Grato por mostrarem pra mim e para muita gente que delicia que é ser bicha.

--

--